Eu sei, mas não vou contar pra ninguém, a não ser pra esta tela em branco. É pra isso que serve um blog secreto, né? Pra transbordar sem afogar os outros. Se bem que hoje em dia nem precisaria ser secreto: as pessoas não acessam mais blogs, só abrem o navegador e ligam as redes sociais na veia. Blog agora é vintage, e eu sou mesmo meio antiquada.
Mas o que é que eu sei? Sei o que fiz e o que quero, e não é nada demais — ou não deveria ser. Hoje, indo pro trabalho mais tarde depois de sair do médico, peguei o ônibus quase vazio. Meia dúzia de pessoas sentadas, semimortas à espera do ponto em que seriam forçadas a reviver e descer e produzir coisas que nunca vão ser suas. Nenhuma de pé. Um tipo de oásis sobre rodas onde dava até pra escolher em que sombra sentar. Fui pro fundo do ônibus com a sensação de ser rainha de alguma coisa. Sentei junto da janela. Como às vezes acontece, a alegria virou combustível e queimou a noção do ridículo. Liguei música — com os fones — e esqueci o mundo; o superego devo ter deixado no bolso de outra calça, porque logo estava cantando mais alto do que deveria. Se alguém me olhou feio, não notei. Mas alguém me olhou bonito.
Ela estava sentada do outro lado do corredor, na mesma parte do ônibus. Cantava — ainda mais alto do que eu, porque escutei mesmo por baixo dos fones e da minha própria cantoria desqualificada. Olhei de relance, frio na barriga. Estava dando uma de boba, e ela sorrindo e topando a bobagem, consciente. Parei de olhar, mas parar de cantar seria admitir o vexame. Você não para de andar só porque virou o pé com aquele salto alto lindo-porém-desastroso. Continua a desfilar, empina o queixo, quem sabe dá até uma rebolada. Rebolar já seria demais pra mim, então eu a copiei: sorri. Vamos lá, sem medo de ser besta. Easy come, easy go, will you let me go? Efeito Bohemian Rhapsody: depois do filme, todo mundo é fã do Queen, até gente jovem demais pra se lembrar da morte do Freddie.
Que nem ela. No, we will not let you go! Jovem ou não, ela conhecia a letra. Cada vez que eu olhava, os lábios articulavam as palavras, mesmo que um pouco fora do ritmo por só ouvir o som da minha voz. Eu via os cabelos bem pretos, bem lisos, até a altura do queixo, e a pele escura, castanho-avermelhada; parecia tão macia, tão perfeita, nunca tive essa pele, eu, pálida e manchada, e os olhos dela, assim, meio puxadinhos, oblíquos se preferir, e ao reparar tanto reparei que reparava demais, e ela reparou que eu reparava, e aí o estrago foi irreparável. A gente semimorta ao redor não existia mais. Só ela: viva, o sorriso uma lua crescente acelerada, os olhos lúcidos brincando comigo.
Veio sentar no banco vazio ao meu lado. Sem convite, como uma velha amiga, acostumada a ser bem-vinda. Adoro Queen, cresci ouvindo, ela contou. Arrá! Não queria que eu pensasse que era só fã de ocasião. Mas que importância isso tinha? Nenhuma, mas somos todos tão presunçosos, tão ciumentos das coisas que chamamos de nossas, minha banda, minha história, meu estilo — tudo poeira. Tive vergonha de presumir qualquer coisa sobre a juventude dela, quantos anos tinha, uns vinte e cinco, no máximo? Eu, dez a mais, grande merda, em dez anos cabe muita futilidade. Nos olhos dela, a história do mundo.
Conversamos. Sobre quê? Mais bandas de rock, todas mais velhas que nós. Você mora por aqui? Cheguei faz pouco tempo, conheço ninguém, tô que nem aquela menina daquele livro. Que livro? Não lembro, certeza que existe um livro sobre isso, ou vários. Ah, os livros. Café? Adoro. Eu procurava as palavras certas, guias que pudessem me levar aonde queria, mesmo sem saber que queria (e agora sei). Parei de forçar passagem e de resistir ao fluxo: deixei a estranha me levar. Até que tropecei: tua pele é tão linda. Eu não tinha nada menos idiota pra dizer? Nada que, ao falar dela, não dissesse tanto sobre mim?
Vergonha, raiva, devo ter corado, mas ela disse: a sua é que é, e eu ri porque era mentira, mas tudo bem, porque ela passou a mão no meu rosto e isso converteu tudo em verdade. Tudo a partir daquele ponto seria verdadeiro, sem máscara nem venda nos olhos, mordaça, freio nos dentes. Um beijo a galope. Tão natural que assustou. Assim, no ônibus? Assim mesmo. Uma confusão de carinhos, mais beijos de carona, e aquele cabelo preto nas minhas mãos, quanto cabelo, por que tanto?, o rosto liso, e eu, que estava acostumada a fios mais curtos e barbas e voz grossa, achando tudo tão esquisito e tão bom.
O ponto passou, outro chegou, ela alisou minha mão e disse: desço no próximo. Eu ia até a parada final sem ela, e a viagem, que tinha começado tão bem, de repente pareceu insuportável. Eu queria mais, não me atrevi a pedir. Por quê? Ela sacou um cartão de visitas. Karina, com K. Game developer. Me liga se quiser tomar aquele café. E o sorriso, a lua, nunca vi expressão mais aberta e dona de si. Ela não pediu nada, não exigiu; não esperava: só oferecia. Deixou um beijo no meu rosto antes de descer.
Fui pro escritório sem encostar os pés no chão. Fazia muito tempo que não era tão feliz. Também não era triste: existia. Ah, mas a gente não deve procurar felicidade nos outros. Certo, não deve, mas e quando esbarra nela sem planejar? Eu tinha encontrado, senão felicidade, alegria, por passageira que fosse. Foi bom conhecer alguém. Mais que alguém: a Karina.
Devo ter feito um trabalho medíocre, porque só me lembro de passar a tarde suspirando e de vez em quando alisar aquele cartão, pensando: meus dedos cobrem as impressões digitais dela, é quase pegar de novo aquela mão, e vou pegar. Vou ligar pra ela amanhã, não, depois, pra não ser grudenta, e perguntar se ela quer ver Bacurau. Será que a gente vai aproveitar o filme? Porque deve ser bom, mas acho que vou passar a maior parte da sessão de olhos fechados e…
Só na volta pra casa, no ônibus — lotado —, a brisa baixou, a vela murchou e meus pés bateram com tudo no chão.
E agora? Como vai ser quando eu contar isso pra Marcinha? Marcinha, minha melhor amiga desde o ensino médio, irmã, mas a gente nunca conversou sobre nada disso. Isso, o quê? Sei tudo que ela pensa (será?), não temos reservas (não?), mas uma coisa é o filho gay adolescente do vizinho, a funcionária trans da pastelaria, a tia que ela só vê no Natal, que mora com a mesma mulher há trinta anos e a chama de amiga, mas todos sabem que são um casal: pessoas aleatórias, distância segura. Mas eu? Eu, que me acho muito descolada e inclusiva porque tenho duas amigas lésbicas; que fui à balada com elas e fiquei envaidecida com a atenção de uma mulher que me pagou uma cerveja e conversou comigo por meia hora, mas foi só isso, e voltei pra casa frustrada em segredo porque não tive coragem de fazer nada; eu, que nunca contei pra ninguém que beijei uma menina naquele feriado em Bertioga, quinze anos atrás. Nem pra Marcinha.
Faz de conta que liguei pra Karina e ficou sério. Agora somos namoradas. Marcinha diz: minha melhor amiga virou lésbica! Ou bi? Você curte um peludo que eu sei. Mas, amiga, então você faz ménage? Estereótipos. Marcinha não é louca de vir com essa (ou é?).
E como vai ser no escritório? Todos se convidam pra casamento, batizado, jantarzinho de casais. Mas vão convidar a gente? Dizem ser a favor de gay casando, adotando criança, passeando na rua sem ser incomodado. Não têm preconceito, ah, não, mas a Lúcia chama tudo o que aborrece de viadagem e jura que a gerente dela é sapatão. O Valdo diz que tudo bem ser gay, é só não desmunhecar. O Guinho não tem problema com as lésbicas — basta que sejam bonitas. Se feias, não se beijem na frente dele, ele não é obrigado. Tem nojo de mulher que imita homem — se a pessoa não usa roupa justa, nem maquiagem, pra ele já é machona. Vai ter nojo da Karina? E de mim? Eu, a mulher do RH que virou lésbica. Ou bi?
Uma vez, no cafezinho, respondi pra Lúcia que se a gerente era sapatão ela não tinha nada a ver com isso. Ela riu e disse que se eu estava tão incomodada ela podia nos apresentar. Eu ri também, e fiquei calada, e estou em silêncio desde então. Entendi o recado: defenda as pessoas diferentes de você, mas só até certo ponto; passou desse ponto, a defesa é pessoal, você se expôs, virou parte daquele grupo, e por que você ia querer isso pra si, se pudesse evitar? Por que eu deveria evitar? Por que evito?
Em casa, sento no sofá e reviro o cartão da Karina entre os dedos, vaivém, um lado preto como os olhos dela, o outro branco como o fantasma da minha covardia. O céu está nublado — que conveniente: não preciso ver a lua. Ligar, não ligar.
Analiso as consequências. Perder amigos? Se os perder, eram amigos mesmo? Ouvir idiotice no escritório, uma atrás da outra? Já ouço. Mas seria diferente: eu, o alvo. Tomar pedrada deve doer mais que olhar a trajetória da pedra atirada longe.
É isso, não é? Quero distância da pedra. A mesma que pode rachar o sorriso de lua da Karina, que não se envergonha de ser e estar.
Porra, é o século XXI. Não dá pra gente ser melhor que isso? Anoiteço sem saber.
Mas sei muito bem o que quero. Sei e não posso contar. Ou posso?
…
Escrevi esse conto em tempos pré-pandêmicos — outubro de 2019 — e até agora ele não havia saído em lugar nenhum. Por isso, resolvi publicá-lo no meu blog nada secreto. Se você chegou até aqui, agradeço por ter lido. 🙂