As (poucas) leituras de 2021

Benjamin DeYoung, Unsplash.

Dois mil e vinte e um foi o ano da vida em que menos li desde que fui alfabetizada. Tal como vi acontecer com muitas outras pessoas que adoram ler, a pandemia prejudicou minha capacidade de me concentrar e de amar o que sempre amei, e ainda não tenho explicação satisfatória para isso.

Se em 2020 tentei me compensar lendo contos curtos, que são uma corrida rápida até a esquina em vez de uma maratona, em 2021 parei de me cobrar até mesmo isso, porque estava exausta de muita coisa, inclusive de insistir em me pertencer. Eu me larguei pela casa. Li pouco, pouquíssimo. Por outro lado, me dei de presente várias leituras brasileiras.

Comecei janeiro lendo os Contos Postais de Diego Guerra, que distribui socos em forma de ficção-relâmpago; emendei com os horrores de Noites negras de Natal, de Karen Alvares e Melissa de Sá; chorei com Homens pretos (não) choram, de Stefano Volp; viajei no tempo com o inquietante Os filhos de Asher, de Isabor Quintiere; e terminei o mês aquecendo o coração com Sentimento secreto, noveleta de amor sáfico e autodescoberta de Dani Salemme (obrigada pela indicação, Karen!).

Em fevereiro, conheci as cidades ambulantes e os personagens complexos de Oceanïc, de Waldson Souza, e sorri no carnaval fantástico de Toda magia, de Johnatan Marques, mas dediquei o resto do mês a uma pesquisa sobre as muralhas da China porque sou dessas.

Passei praticamente o resto do ano todo lendo só na hora de dormir, abraçada à obra completa dos contos de Machado de Assis, leitura que é tanto lazer quanto referência para quem vive às voltas com a tradução de textos do século XIX. Foram tantos meses de Machado que, ao terminar, me veio uma vaga sensação de orfandade.

Em novembro, passeei pelo interior da Bahia com o livro-reportagem Homem com mochila, de Ricardo Santos, e emendei com Estranha Bahia, coletânea de contos de fantasia, ficção científica e horror organizada pelo mesmo Ricardo, por Alec Silva e Rochett Tavares.

Abri dezembro sondando os horrores escondidos na neblina litorânea de Farol da névoa, de Karen Alvares, e voltei ao desassossego romântico-sexual da adolescência com Conectadas, de Clara Alves. Agora, antes de 2021 acabar, estou lendo dois ao mesmo tempo: Violetas, unicórnios e rinocerontes, coletânea de contos organizada por Claudia Du e finalista do Prêmio Argos; e Amora, coletânea de contos inquietantes de Natalia Borges Polesso, ganhadora do Jabuti, sobre os amores e desencontros entre mulheres. Este é um caso curioso. Amora me apareceu no meio das muitas obras que foram oferecidas de graça na internet durante a pandemia, mas não no original em português e sim em inglês, com tradução de Julia Sanches. É meu primeiro contato com a obra de Natalia e me pego o tempo todo tentando desvendar o português por trás das frases; ao falhar nisso, concluo que a versão de Julia é muito natural e fluida, salpicada, aqui e ali, por palavras brasileiras que a tradutora talvez tenha decidido preservar para dar ao público anglófono um gostinho de Brasil.

Era só tudo isso que eu queria dizer hoje.

Eu sei, mas não vou contar

Eu sei, mas não vou contar pra ninguém, a não ser pra esta tela em branco. É pra isso que serve um blog secreto, né? Pra transbordar sem afogar os outros. Se bem que hoje em dia nem precisaria ser secreto: as pessoas não acessam mais blogs, só abrem o navegador e ligam as redes sociais na veia. Blog agora é vintage, e eu sou mesmo meio antiquada.

Mas o que é que eu sei? Sei o que fiz e o que quero, e não é nada demais — ou não deveria ser. Hoje, indo pro trabalho mais tarde depois de sair do médico, peguei o ônibus quase vazio. Meia dúzia de pessoas sentadas, semimortas à espera do ponto em que seriam forçadas a reviver e descer e produzir coisas que nunca vão ser suas. Nenhuma de pé. Um tipo de oásis sobre rodas onde dava até pra escolher em que sombra sentar. Fui pro fundo do ônibus com a sensação de ser rainha de alguma coisa. Sentei junto da janela. Como às vezes acontece, a alegria virou combustível e queimou a noção do ridículo. Liguei música — com os fones — e esqueci o mundo; o superego devo ter deixado no bolso de outra calça, porque logo estava cantando mais alto do que deveria. Se alguém me olhou feio, não notei. Mas alguém me olhou bonito.

Ela estava sentada do outro lado do corredor, na mesma parte do ônibus. Cantava — ainda mais alto do que eu, porque escutei mesmo por baixo dos fones e da minha própria cantoria desqualificada. Olhei de relance, frio na barriga. Estava dando uma de boba, e ela sorrindo e topando a bobagem, consciente. Parei de olhar, mas parar de cantar seria admitir o vexame. Você não para de andar só porque virou o pé com aquele salto alto lindo-porém-desastroso. Continua a desfilar, empina o queixo, quem sabe dá até uma rebolada. Rebolar já seria demais pra mim, então eu a copiei: sorri. Vamos lá, sem medo de ser besta. Easy come, easy go, will you let me go? Efeito Bohemian Rhapsody: depois do filme, todo mundo é fã do Queen, até gente jovem demais pra se lembrar da morte do Freddie.

Que nem ela. No, we will not let you go! Jovem ou não, ela conhecia a letra. Cada vez que eu olhava, os lábios articulavam as palavras, mesmo que um pouco fora do ritmo por só ouvir o som da minha voz. Eu via os cabelos bem pretos, bem lisos, até a altura do queixo, e a pele escura, castanho-avermelhada; parecia tão macia, tão perfeita, nunca tive essa pele, eu, pálida e manchada, e os olhos dela, assim, meio puxadinhos, oblíquos se preferir, e ao reparar tanto reparei que reparava demais, e ela reparou que eu reparava, e aí o estrago foi irreparável. A gente semimorta ao redor não existia mais. Só ela: viva, o sorriso uma lua crescente acelerada, os olhos lúcidos brincando comigo.

Veio sentar no banco vazio ao meu lado. Sem convite, como uma velha amiga, acostumada a ser bem-vinda. Adoro Queen, cresci ouvindo, ela contou. Arrá! Não queria que eu pensasse que era só fã de ocasião. Mas que importância isso tinha? Nenhuma, mas somos todos tão presunçosos, tão ciumentos das coisas que chamamos de nossas, minha banda, minha história, meu estilo — tudo poeira. Tive vergonha de presumir qualquer coisa sobre a juventude dela, quantos anos tinha, uns vinte e cinco, no máximo? Eu, dez a mais, grande merda, em dez anos cabe muita futilidade. Nos olhos dela, a história do mundo.

Conversamos. Sobre quê? Mais bandas de rock, todas mais velhas que nós. Você mora por aqui? Cheguei faz pouco tempo, conheço ninguém, tô que nem aquela menina daquele livro. Que livro? Não lembro, certeza que existe um livro sobre isso, ou vários. Ah, os livros. Café? Adoro. Eu procurava as palavras certas, guias que pudessem me levar aonde queria, mesmo sem saber que queria (e agora sei). Parei de forçar passagem e de resistir ao fluxo: deixei a estranha me levar. Até que tropecei: tua pele é tão linda. Eu não tinha nada menos idiota pra dizer? Nada que, ao falar dela, não dissesse tanto sobre mim?

Vergonha, raiva, devo ter corado, mas ela disse: a sua é que é, e eu ri porque era mentira, mas tudo bem, porque ela passou a mão no meu rosto e isso converteu tudo em verdade. Tudo a partir daquele ponto seria verdadeiro, sem máscara nem venda nos olhos, mordaça, freio nos dentes. Um beijo a galope. Tão natural que assustou. Assim, no ônibus? Assim mesmo. Uma confusão de carinhos, mais beijos de carona, e aquele cabelo preto nas minhas mãos, quanto cabelo, por que tanto?, o rosto liso, e eu, que estava acostumada a fios mais curtos e barbas e voz grossa, achando tudo tão esquisito e tão bom.

O ponto passou, outro chegou, ela alisou minha mão e disse: desço no próximo. Eu ia até a parada final sem ela, e a viagem, que tinha começado tão bem, de repente pareceu insuportável. Eu queria mais, não me atrevi a pedir. Por quê? Ela sacou um cartão de visitas. Karina, com K. Game developer. Me liga se quiser tomar aquele café. E o sorriso, a lua, nunca vi expressão mais aberta e dona de si. Ela não pediu nada, não exigiu; não esperava: só oferecia. Deixou um beijo no meu rosto antes de descer.

Fui pro escritório sem encostar os pés no chão. Fazia muito tempo que não era tão feliz. Também não era triste: existia. Ah, mas a gente não deve procurar felicidade nos outros. Certo, não deve, mas e quando esbarra nela sem planejar? Eu tinha encontrado, senão felicidade, alegria, por passageira que fosse. Foi bom conhecer alguém. Mais que alguém: a Karina.

Devo ter feito um trabalho medíocre, porque só me lembro de passar a tarde suspirando e de vez em quando alisar aquele cartão, pensando: meus dedos cobrem as impressões digitais dela, é quase pegar de novo aquela mão, e vou pegar. Vou ligar pra ela amanhã, não, depois, pra não ser grudenta, e perguntar se ela quer ver Bacurau. Será que a gente vai aproveitar o filme? Porque deve ser bom, mas acho que vou passar a maior parte da sessão de olhos fechados e…

Só na volta pra casa, no ônibus — lotado —, a brisa baixou, a vela murchou e meus pés bateram com tudo no chão.

E agora? Como vai ser quando eu contar isso pra Marcinha? Marcinha, minha melhor amiga desde o ensino médio, irmã, mas a gente nunca conversou sobre nada disso. Isso, o quê? Sei tudo que ela pensa (será?), não temos reservas (não?), mas uma coisa é o filho gay adolescente do vizinho, a funcionária trans da pastelaria, a tia que ela só vê no Natal, que mora com a mesma mulher há trinta anos e a chama de amiga, mas todos sabem que são um casal: pessoas aleatórias, distância segura. Mas eu? Eu, que me acho muito descolada e inclusiva porque tenho duas amigas lésbicas; que fui à balada com elas e fiquei envaidecida com a atenção de uma mulher que me pagou uma cerveja e conversou comigo por meia hora, mas foi só isso, e voltei pra casa frustrada em segredo porque não tive coragem de fazer nada; eu, que nunca contei pra ninguém que beijei uma menina naquele feriado em Bertioga, quinze anos atrás. Nem pra Marcinha.

Faz de conta que liguei pra Karina e ficou sério. Agora somos namoradas. Marcinha diz: minha melhor amiga virou lésbica! Ou bi? Você curte um peludo que eu sei. Mas, amiga, então você faz ménage? Estereótipos. Marcinha não é louca de vir com essa (ou é?).

E como vai ser no escritório? Todos se convidam pra casamento, batizado, jantarzinho de casais. Mas vão convidar a gente? Dizem ser a favor de gay casando, adotando criança, passeando na rua sem ser incomodado. Não têm preconceito, ah, não, mas a Lúcia chama tudo o que aborrece de viadagem e jura que a gerente dela é sapatão. O Valdo diz que tudo bem ser gay, é só não desmunhecar. O Guinho não tem problema com as lésbicas — basta que sejam bonitas. Se feias, não se beijem na frente dele, ele não é obrigado. Tem nojo de mulher que imita homem — se a pessoa não usa roupa justa, nem maquiagem, pra ele já é machona. Vai ter nojo da Karina? E de mim? Eu, a mulher do RH que virou lésbica. Ou bi?

Uma vez, no cafezinho, respondi pra Lúcia que se a gerente era sapatão ela não tinha nada a ver com isso. Ela riu e disse que se eu estava tão incomodada ela podia nos apresentar. Eu ri também, e fiquei calada, e estou em silêncio desde então. Entendi o recado: defenda as pessoas diferentes de você, mas só até certo ponto; passou desse ponto, a defesa é pessoal, você se expôs, virou parte daquele grupo, e por que você ia querer isso pra si, se pudesse evitar? Por que eu deveria evitar? Por que evito?

Em casa, sento no sofá e reviro o cartão da Karina entre os dedos, vaivém, um lado preto como os olhos dela, o outro branco como o fantasma da minha covardia. O céu está nublado — que conveniente: não preciso ver a lua. Ligar, não ligar.

Analiso as consequências. Perder amigos? Se os perder, eram amigos mesmo? Ouvir idiotice no escritório, uma atrás da outra? Já ouço. Mas seria diferente: eu, o alvo. Tomar pedrada deve doer mais que olhar a trajetória da pedra atirada longe.

É isso, não é? Quero distância da pedra. A mesma que pode rachar o sorriso de lua da Karina, que não se envergonha de ser e estar.

Porra, é o século XXI. Não dá pra gente ser melhor que isso? Anoiteço sem saber.

Mas sei muito bem o que quero. Sei e não posso contar. Ou posso?


Escrevi esse conto em tempos pré-pandêmicos — outubro de 2019 — e até agora ele não havia saído em lugar nenhum. Por isso, resolvi publicá-lo no meu blog nada secreto. Se você chegou até aqui, agradeço por ter lido. 🙂

#Defendaolivro

“A fantasia é escapista e essa é sua glória. Se um soldado é aprisionado pelo inimigo, não consideramos seu dever escapar?… Se valorizamos a liberdade da mente e da alma, se somos partidários da liberdade, é nosso dever escapar e levar conosco todas as pessoas que pudermos.”


Ursula K. Le Guin (1929–2018) em The Language of the Night: Essays on Fantasy and Science Fiction (1979), parafraseando um trecho do ensaio “On Fairy-Stories”, de J. R. R. Tolkien.


#Defendaolivro

Dez escritoras brasileiras que a Cláudia Lemes recomenda

Há alguns dias recebi essa lista da Cláudia Lemes, autora conhecida de thrillers, e desde então não caibo em mim de orgulho. São dez escritoras de “literatura de gênero” (leia-se ficção científica, fantasia, terror e correlatos) que publicaram de modo independente ou por pequenas editoras, ela leu e recomenda. Algumas já conheço; outras, só de nome; algumas, nem conhecia, e vou conferir quando puder.

Para ver do que Camila é capaz, basta ler seu conto A Noite Não Me Deixa Dormir, disponível na Amazon. Ela é muito dona do seu texto, que lemos sem aquela sensação de já ter visto aquilo em outro lugar, e com a certeza de que ela o escreveu com um sorriso malvado no rosto. Uma autora que já encontrou sua voz e seu ritmo e não tem medo deles.

Derreti!

Se você ainda não conhece o boletim (ou newsletter) da Cláudia, assine e receba no seu e-mail notícias sobre lançamentos, dicas de leitura e curiosidades que a autora reúne em suas pesquisas a respeito de criminalística e assassinos em série.

E, se ainda não conhece meu conto A noite não me deixa dormir, aproveite que ele sai por R$ 1,99 na Amazon ou de graça para quem assina o Kindle Unlimited.

Biografias

Estava lendo uma biografia (não posso contar ainda qual é), dessas bem detalhadas, em que o autor consulta mil arquivos e entrevista todas as pessoas vivas que foram íntimas do biografado, da infância até a última palavra engrolada. Pais, cônjuges, melhores amigos, colegas de trabalho.

Como será que é ser relevante o suficiente para ganhar uma biografia, com toda a dedicação e os custos que isso acarreta? Se vocês tivessem tamanho impacto na história da sua época, o que acham que as pessoas entrevistadas diriam de vocês?

Eu só consigo pensar no que minha mãe contaria da minha pessoa quando pirralha e rir muito. DE NERVOSO.

Mas não serei biografada, por isso já conto aqui pra vocês o básico da criança:

– Levava livro a festa de família e me trancava num cômodo para ler até alguém exigir que eu ficasse na festa.

– Não gostava de boneca, só de bola, carrinho e lápis de cor. Tudo meu tinha que ser azul. Minhas tias me convenceram a gostar de boneca quando arranjaram uma Barbie de vestido azul. Era um vestido bem legal e tão trevoso que minhas irmãs e eu passamos a usá-lo como “a roupa da vilã” nas brincadeiras.

– Achava que tinha um lobisomem morando do outro lado do portão misterioso que ficava no muro do quintal dos fundos. (Podem creditar essa às minhas irmãs, tão criativas.) Mas só tinha mesmo uma padaria.

– Acreditava que o Michael Jackson (o bonitinho dos tempos do Thriller, e, na minha opinião, meu noivo) vinha toda noite de avião levar minhas irmãs para passear, mas não me levava porque eu pegava no sono e não conseguia acordar na hora. (Botem na conta das minhas irmãs também.)

– Era tão ansiosa que era só ter um programa diferente, tipo festa de casamento, que me dava caganeira.

– Sentei num balanço pendurado numa árvore com minha irmã e uma prima. O galho estava podre de cupim e caiu em cheio na minha cabeça. Saí trançando as pernas, tão zureta que berrava MEU CÉREBRO, MEU CÉREBRO, EU VOU FICAR COM PROBLEMAS MENTAIS. (Tinha bom vocabulário e zero noção.)

– Fui internada por causa de uma febre, mas a diaba era tão forte que as enfermeiras tiveram que me amarrar no berço. Ficaram com medo que eu me atirasse da janela, porque comecei a delirar, jurando que era um gavião-aranha (híbrido da minha cabeça) e queria voar pra casa.

Pronto, o que tinha de interessante era isso.

E vocês? Que coisas levemente-constrangedoras-mas-engraçadinhas seus pais e irmãos revelariam aos seus biógrafos?

Texto publicado originalmente no meu perfil no Facebook em 31.1.2020.

Grande, feio, com cara de mau

Quando acordei, tinha uma tatuagem nova: um besouro enorme, preto, cobrindo todo o antebraço feito um inseto paleozoico. Examinei bem a figura, a cabeça dela tinha um rosto humano, masculino, maldoso.

Na mesma semana eu tinha feito minha primeira tatuagem, uma porcariazinha no braço direito, dessas que a gente tampa com a roupa quando não quer mostrar. Eu a havia ganhado num sorteio qualquer. Mas não me lembrava de jamais ter feito, nem mesmo desejado, uma tatuagem daquele tamanho, ainda mais de besouro grande, feio, com cara de mau.

Será que eu tinha um bom motivo para ter feito a tatuagem? Será que gostava dela? Claro que não. Antecipei os piores desdobramentos: a cara da minha mãe quando a visse, a dificuldade de arranjar emprego como caixa de banco com aquela coisa no braço ou a cicatriz caso resolvesse tirá-la a laser, e o custo, putz, o custo.

Levantei, zonza. O que tinha feito ontem? Não sou de beber, nem cheirar, nem injetar. Esfreguei os olhos, mas o besouro não sumiu. Ao contrário: quando saí do quarto para ver minha família, havia mais besouros. Dos de verdade: pretos, cascudos, cheios de zum-zum, e por mim tudo bem, nunca tive medo de besouro, mas por que eles me cercavam, vinham para cima de mim, nublavam a visão feito muscae volitantes? Que é isso, maldição?

“Mãe, nunca fui supersticiosa”, lembro-me de dizer, “mas acho que agora sou.”

Na rua os besouros acorriam à minha pessoa e os humanos se afastavam, contrariados. Tinham nojo de mim. Lembrei-me de ter lido que no século 19 as pessoas consideravam as baratas como coleópteros, portanto primas dos besouros, tudo a mesma coisa, e pensei vagamente: “Sou uma espécie de Kafka hipster”.

Antes de me resignar àquela solidão cercada de patas, asas e zumbidos, acordei.

E esse foi o sonho esquisito da semana.

Mas ainda é quarta-feira…

P. S.: Não tenho tatuagem. Nem acho que vou ter, porque sou cagona, sovina e morro de medo de agulha.

Está sem ideias para escrever?

Escritora, está sem ideias pra escrever?

Assista a documentários.

Dá certo para mim, talvez por não ser de caso pensado, mas não custa tentar.

Na década passada, estava sem nada para fazer um dia e, zapeando pela TV, vi parte de um documentário sobre plantas carnívoras. Saiu “Verde Efêmero do Éden”. Foi uma das minhas poucas incursões na ficção científica um conto que agradou muito os leitores. Um amigo, também autor e editor, chegou a me dizer para largar a fantasia e meter as caras na ficção científica, que lá era o meu lugar. (Não o ouvi, nem uma coisa exclui a outra, mas entendi o amigo: foi elogio.)

No começo desta década assisti a um documentário sobre teorias a respeito da cidade perdida da Atlântida. Tive um insight e fiz trocentas anotações para um romance histórico-mitológico, que ficou por terminar, mas um dia termina. Esses dias mesmo, peguei o bichinho no colo por um tempo antes de ele fugir de novo. É que vi um doc de arqueologia e na sequência despejei mais uma parte desse livro esquecido (mas não muito) na minha tela. Uma hora ele topa vir comer na minha mão.

Veja se dá certo para você.

É claro que a dica não vale só para documentários, mas também filmes de ficção, livros, música, passeios etc. Qualquer experiência que amplie suas referências é matéria-prima.

Publicado originalmente no meu perfil no Facebook em 3 de julho de 2019.

A morte e a torre

Ontem, voltando do almoço, vi um carro dos bombeiros à porta do prédio, retirando uma senhora numa cadeira de rodas.

À noite, por mensagem, a síndica contou que ela havia morrido.

Lembrei a imagem: a mulher pequena, muito velha, lúcida, conversando com o zelador e os bombeiros enquanto a carregavam escada abaixo até a maca e o carro para ir ao hospital. Não parei para olhar por mais que uns segundos. A situação estava sob controle, não precisavam de mim ali.

A falecida tinha 97 anos. Teve um infarto, mas, sabendo o que viria, deu tempo de escolher a roupa que usaria no velório. Era muito limpa e vaidosa, contou o zelador, e morou aqui por cinquenta anos. Espero que, além de longa, sua vida tenha sido boa.

Não a conheci, mas já devo tê-la visto. O prédio é grande e antigo, e parte das moradoras, ainda mais antiga, se reúne num banco ao lado do portão, quando não chove, para prosear. Talvez ela estivesse entre essas pessoas. Moro aqui há pouco mais de dois anos e é a segunda pessoa a morrer só no meu bloco.

Hoje cedo a síndica perguntou: como ela não está na cidade e a administradora do condomínio não abre aos domingos, será que eu poderia fazer a nota de falecimento para colar na porta do prédio e nos elevadores, avisando aos moradores onde e quando será o velório? Não tenho impressora, expliquei, terá que ser à mão. Serviu.

Antes de escrever, confirmei na internet o endereço do cemitério. E descobri, fascinada, que existem arranha-céus para os mortos, o maior deles aqui mesmo, em Santos.

Em seu site, o Memorial Necrópole Ecumênica se anuncia como o cemitério vertical mais alto do mundo, registrado no Guinness Book desde 1991. À primeira vista, parece um condomínio comum, a única torre numa rua de casinhas antigas, térreas, amuralhadas por um morro coberto de floresta. São “40 mil m² de área, 90% mata atlântica nativa preservada”, diz o site, que tem um chat para tirar dúvidas.

Reconheci a estranheza da pergunta e a fiz mesmo assim: parece bonito, posso visitar em circunstâncias felizes?

Posso. “Venha conhecer nosso museu de carros antigos.”

Meu “rolê trevoso no cemitério” acaba de ser redefinido.

Como eu escrevo

José Nunes De Cerqueira Neto tem um site chamado Como eu escrevo com uma proposta linda, que transcrevo nas palavras dele:

“Eu criei o ‘Como eu escrevo’ pensando nas pessoas que sofrem para escrever.

Saber como escrevem as pessoas que admiramos nos inspira a refletir sobre o nosso próprio processo criativo.

Minha esperança é que o projeto ajude a fazer da academia (e da literatura) um lugar melhor.”

O site está repleto de entrevistas com escritores, acadêmicos e juristas brasileiros. Entre autores de ficção e não ficção, já responderam às perguntas dele nomes conhecidos como Frei Betto, Laerte Coutinho, Leonardo Boff e Márcia Tiburi, além escritores de ficção especulativa como Alexey Dodsworth, Aline Valek, Braulio Tavares, Carolina ManciniCristina LasaitisChristopher KastensmidtErica Nara BombardiFelipe Castilho e tantos outros queridos que a gente acompanha. 

Agora estou entre eles, feliz e sorridente que nem uma invasora de selfie alheia.  O link para minha entrevista é este. Passem por lá!

Valeu, José!

Top 5 livros de Terror | Por Diego Guerra

No Top 5 livros de Terror que o Diego Guerra* fez para o site Crônicas Fantásticas, em meio a Lovecraft, Rudyard Kipling e Bram Stocker, está meu livro Contos sombrios! Nas palavras dele sobre o conto Chuva vem:

Um dia os estudiosos da literatura escreverão ensaios completos sobre esse conto curto. Enquanto o narrador conta suas agruras como morador de rua, somos seduzidos pela sua triste história, embalados docilmente pelo seu jeito simples, até que o final nos atinge como uma martelada na nuca. Daquelas coisas que a gente lê e fica com raiva porque sabe que jamais vai conseguir escrever algo tão bom assim.

Estou lisonjeada e muito feliz. Obrigada, Diego!

Confiram as 5 indicações aqui.

*Escritor e designer, autor de O Teatro da Ira (Draco, 2016) e O Gigante da Guerra (Crown, 2017).